Nos cinco meses seguintes ao início da invasão pela Rússia, em 24 de fevereiro de 2022, a Ucrânia, uma das principais fornecedoras de cereais e outros produtos agrícolas, ficou impedida de exportar seus produtos. Ao bloquear os portos ucranianos, os russos interromperam uma artéria vital do sistema alimentar global.
Como advertiram especialistas em segurança alimentar, essa estratégia era potencialmente catastrófica para os países mais pobres, por gerar escassez de grãos e consequente aumento de preços. Em julho, por fim, Kiev e Moscou firmaram um acordo a respeito, sob mediação da Turquia e da Organização das Nações Unidas.
A Iniciativa dos Grãos do Mar Negro tem sido basicamente respeitada, apesar de alguns percalços, como as ameaças russas de se retirar. Em 18 de março, ela expirou, e negociações para renová-la estão em curso. Poucos dias antes, Moscou declarou-se disposto a estendê-la por mais 60 dias – a metade do prazo acordado na última prorrogação, em novembro – alegando restrições a suas próprias exportações agrícolas.
Embora as vendas de alimentos russos não tenham sido diretamente penalizadas, as autoridades do país invasor afirmam que sanções secundárias à logística e segurança dificultaram suas atividades exportadoras, e há meses têm expressado descontentamento a respeito.
Evitando o mal pior
William Moseley, membro do Painel da ONU de Peritos de Alto Nível em Segurança Alimentar e Nutrição (HLPE-FSN, na sigla em inglês), rebate em parte tais alegações: de fato, sob o acordo a Rússia tem tido dificuldades para exportar fertilizantes. Por outra lado, suas vendas de trigo duplicaram, sugerindo que o país está indo “muito bem”.
Essa avaliação evidencia como é complexo analisar a Iniciativa do Mar Negro, oito meses após sua entrada em vigor. No início de março, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que o pacto “contribuiu para reduzir o custo global dos alimentos, proporcionando alívio crítico”. Para o diretor do Programa Alimentar Mundial (WFP), David Beasley, é “crítico” renová-lo.
O presidente do HLPE-FSN, Bernard Lehmann, confirma que o pacto sobre os grãos teve efeito significativo para minorar a fome tanto em partes do norte e leste da África, como no Oriente Médio e Ásia.
“Sem o acordo, teria ocorrido escassez desse artigo de importação, e os preços teriam subido ainda mais, tornando a compra de trigo muito, muito cara para esses países. Então, no geral, ele acalmou o mercado, e esses países se beneficiaram.”
Moseley descreve a iniciativa como “um sucesso confirmado”, que contribuiu para uma redução de 8% dos preços internacionais dos cereais e permitiu à Ucrânia ampliar sua capacidade de armazenamento e continuar produzindo. Portanto, “o acordo pode ser considerado bem-sucedido, sobretudo se a meta era aplacar os medos e estabilizar os preços”.
No entanto, ele frisa que os preços não retornaram a seus níveis de antes da guerra, e o acordo expôs a grande vulnerabilidade de certos países africanos a turbulências no abastecimento e volatilidade dos preços dos cereais. O professor de geografia do Macalester College de Minnesotta, EUA, aponta que os países que produzem seus próprios grãos, mesmo espécies tradicionais menores, como painço ou sorgo, atravessaram bem melhor a crise recente.
“Produção mais localizada de uma diversidade de grãos em diversos países africanos é a melhor solução, no longo prazo. A crise alimentar é também mais aguda nas áreas sob o impacto de conflitos, como a Somália e o Iêmen. Esse acordo não ajuda em tais situações, embora historicamente o Programa Alimentar Mundial, que intervém em situações emergenciais, tenha obtido da Ucrânia grande parte de seus cereais.”
Grãos para os ricos?
Uma crítica persistente à iniciativa para os grãos é que as nações mais ricas, inclusive várias da União Europeia, receberam mais cereais ucranianos, após o bloqueio, do que as de regiões mais pobres.